quarta-feira, dezembro 14, 2011

Além do capital

Eu não consigo mais admitir que haja dignidade em trabalhar como um mouro, mas insatisfeito.  Eu não consigo entender a lógica de que pra valorizar o suor do rosto, vertido às custas de muito sacrifício e sofrimento, seja preciso trabalhar até a morte ou até os limites da saúde. Se bem que entender a lógica eu até entendo. É que no capitalismo, pra aumentar a sua cotação no mercado, é preciso que você prove que pode produzir em quaisquer condições. Eu até entendo, mas não concordo. Se eu já achava absurda a máxima de que sinônimo de amar é sofrer, tampouco considero a possibilidade de que sofrimento valorize o trabalho, o ofício de uma pessoa. Sofrimento não valoriza nada, mas existe uma cultura sádica e/ou masoquista que insiste em igualar sofrimento a mérito. É justamente essa cultura do mérito que é responsável por essa loucura toda. Pra justificar o orgulho de pendurar no pescoço aquela medalha de honra que reafirma que o sujeito abdicou de uma vida mundana, de prazeres desnecessários pra produzir (ou reproduzir?) conhecimento, dinheiro, cultura. Porque a medalha de honra e o quadro de funcionário do mês vão sempre pra aquele que trocou o lazer, o bem estar e porque não dizer a indolência (?!) por horas de estudo, de trabalho e por isso será recompensado. É essa cultura do sofrimento como mérito que embota nossos afetos, nossa inteligência e nossa crítica. Afinal, somos brasileiros e não desistimos nunca, não é?

Para com isso, Capitalismo! Por que nos referimos ao termo “dia útil” como um dia de trabalho ou de estudo? Fins de semana e feriados são inúteis? Só porque nesses dias é muito mais útil desfrutar de um almoço em família, de um abraço, de um seriado, de um filme, de boa música, de uma boa conversa, dos nossos amigos, filhos, afilhados, sobrinhos, namorados, maridos ou simplesmente da delícia de não ter nada pra fazer? Porque provavelmente não estejamos preocupados em entupir nossos currículos de propaganda pessoal, com títulos e feitos que deveriam preencher, no mínimo, umas trinta paginas pra que o nosso rótulo de profissional capacitado seja colocado nas prateleiras de maior consumo? Porque não estamos interessados em competir pela atenção do chefe só pra matar nossos concorrentes de inveja? É sério. Isso não tem mais graça. E a mim não convence mais que é o justo e bonito.

Até porque agora eu sei que no fim das contas quem paga uma fatura altíssima sou eu. Minha saúde tem limite de crédito. E eu não posso mais negligenciar isso porque a conta está sendo cobrada com juros. E eu só posso pagar o mínimo porque não consigo mais ter tempo pra mim. Porque se eu quiser tempo pra mim vou ter que assumir o rótulo de irresponsável, fraca e preguiçosa (injustamente). Eu sei que preciso pagar minhas contas. Eu sei que esse é meu mundo e eu preciso me adequar da melhor forma que conseguir. Eu sei que, como diria uma professora minha, ao citar Lacan, a gente goza no capitalismo. Eu sei que o Código de Doenças Internacionais (CID-10) está aí pra diagnosticar as conseqüências dessa relação doentia com o mundo, relação de submissão que faz parte da nossa condição atual. Eu sei que se eu pudesse me enquadrar em mais um rótulo estaria na transição subversiva entre o workalolic e o *workafobic. E se você passa a ter pavor do trabalho a fase seguinte seria rasgar dinheiro. E todos sabem que o que isso quer dizer na cultura popular.

Eu sei que preciso de um ofício. E aí está a razão dessa luta que assumi em nome do meu bem estar. Um ofício não precisa ser sofrido, não precisa ser desumano. Um ofício pode ser amado e pode trazer satisfações. E quando falo de satisfação não me refiro a títulos, a um salário com incontáveis dígitos, à comodidade oferecida por concursos públicos, à admiração das pessoas por eu ter conseguido além de um lugar ao sol, o prestígio conquistado com esforço e determinação. Um ofício pode ser leve e render dinheiro suficiente pra pagar suas despesas e pequenos luxos. É possível que exista prazer em oferecer um bom trabalho, em ajudar alguém que pode vir a ser mais que um cliente, sem desenvolver uma úlcera ou um transtorno de ansiedade. Um ofício pode ser bonito sem ser piegas ou voluntário. Um ofício precisa deixar tempo livre pra fazer coisas só por vontade e aí reside a lógica do trabalho voluntário. Um ofício é uma prestação de serviço, mas pra isso não precisa perder sua condição humana. Um ofício deveria nos oferecer a possibilidade de termos um lugar no mundo e não a obrigação de competir alienadamente pra poder bancar esse lugar.

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* Que eu saiba o termo workafobic não existe, foi a tentativa de um trocadilho com o termo workaholic.

4 comentários:

Anônimo disse...

Quando eu digo que meu sonho era poder trabalhar só um turno e ganhar o suficiente pra viver bem, as pessoas me chamam de folgada...Mas eu ainda acho que há vida além do trabalho e que ter tempo nos faz até melhores profissionais.E porque eu quero(e todo mundo quer) ter(ser) outros papéis nessa vida tão ligeira.

Juliano Matos disse...

muito lindo texto, me lembrou Mal estar na civilização de Freud..parabens

Janna Érica disse...

Marysa, sinto um conforto indescritível em saber que alguém concorda comigo. A vida é mesmo ligeira pra a gnt viver de um jeito tão medíocre. Nessa era pós moderna, que nos obriga a sermos e termos de tudo, é até incoerente se resumir a uma coisa só. Esse mundo ainda vai gerar muitos esquizofrênicos por causa disso.

Janna Érica disse...

E Julis, fiquei emocionada com a comparação. Freud Rocks! Brigada pela visita