sexta-feira, novembro 05, 2010

Sobre indignações dignas de nota.

[...]"sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogância bem intencionada: piedade. Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não havia possibilidadea de os africanos serem iguais a ela. De jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade. Nenhuma possibilidade de conexão como humanos iguais". 
*Chimamanda Adichie: O perigo de uma história única.


Este texto (tardio) é uma nota de indignação sobre mais um movimento de preconceito contra nordestinos. Precisei sair do recesso pra Reforma Psiquiátrica pra me posicionar quanto a isso por acreditar que qualquer ser humano tem o direito de se mover para além dos rótulos, ódio e violência nossos de cada dia. Talvez minha opinião não faça diferença, mas é uma necessidade pra mim, como humana e nordestina que sou, fazer um pouco de barulho, nem que seja só pra incomodar por três segundos.

Quando só se tem a versão de uma única história de uma pessoa, de um acontecimento, de um lugar todas as possibilidades de existência são retiradas, todas as alternativas de funcionamento no mundo são negadas. Coloca-se tudo em frascos rotulados pra facilitar o entendimento e o acesso. É justificável. É um recurso humano. Mas é justamente por ser humano que é potencialmente cruel e violento. Retirar de um sujeito o direito de ser mais do que se consegue ver é um ato de extrema arrogância. Quando confinamos uma pessoa, um acontecimento, um lugar à nossa incapacidade de sair dos limites do preconceito nos tornamos seres reduzidos, burros, manipuláveis pela história mais fácil de ser vendida, mais fácil de aceitar como verdadeira. Nos tornamos pessoas preguiçosas, impossibilitadas de pensar com autonomia, de se colocar de outra maneira, de ver por perspectivas diferentes. Pior pros cegos. Porque quando conseguem enxergar algum lampejo, alguma luz sobre aquilo que desconhecem perdem o “norte” e o "nordeste", o senso de identidade porque se assustam com o que não poderiam prever, porque se vêem fora de seus padrões quadrados, retos, exatos de compreensão humana. O preconceito existe porque tem-se medo de enfrentar o que se desconhece. Porque é mais prático ser leitor de orelha de livro do que buscar a compreensão da obra inteira. É mais fácil porque é mais resumido e porque pode ser vendido e consumido com mais rapidez. Fast food de idéias, de pensamentos, de opiniões sobre pessoas, acontecimentos e lugares. Engole-se tudo sem saber do ingrediente, sem saber da procedência, porque tantos outros também engoliram e nunca morreram de indigestão. E só não há indigestão porque tudo se dilui na cegueira, na leviandade, no consenso.

O Piauí, o Acre, o Tocantins não se resumem a fins do mundo perdidos num mapa, não se reduzem ao escárnio da cartografia. São lugares que tem limitações e êxitos como quaisquer outros. São lugares que existem além da pobreza, do calor e do esquecimento de outros lugares e pessoas mais “nobres”. São lugares que possuem várias histórias, varias possibilidades de existência, varias alternativas de funcionamento. Que podem sim ter um dos melhores ensinos do Brasil sem causar espanto, descontentamento, estranheza. Que podem sim ter coisas interessantes pra mostrar além de aspirantes a artistas fabricados pra serem saco de pancada e de riso de um país inteiro. O Piauí é mais do que Stefanes “Crossfox” e Giseles Soares, é mais do que analfabetismo, desemprego, seca e calor. É isso que me leva a pensar que o Rio Grande do Sul é mais do que frio, chimarrão e piadas sobre homossexualidade, que o Rio de Janeiro e São Paulo são mais do que violência e criminalidade. Não é muito absurdo ressignificar o ditado “o pior cego é aquele que não quer andar”. Se essa frase já me fez rir, hoje ela faz todo sentido, porque quando não enxergamos não conseguimos nos mobilizar, dar um passo adiante, ficamos estagnados. E pior é assumir uma cegueira adquirida. Realmente, o pior cego é aquele que se acomoda e não quer sair do lugar.


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* Premiada escritora nigeriana que rompeu com a cegueira de uma única história sobre a África através de seus romances.

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